Dois Forasteiros em Cotaxé: a história de Letícia & Nilton
- Juliana Sakae
- 3 de dez. de 2019
- 5 min de leitura

Era verão de 1979. Florianópolis transbordava em umidade e chuva. No alto da avenida Rio Branco, na rua Dom Joaquim, um pequeno edifício da Universidade Federal de Santa Catarina sobrevivia ao boom imobiliário do Centro da cidade. Era dia de treinamento dos estudantes que iam participar do Projeto Rondon.
A estudante-coordenadora, Maria Letícia, observava o grupo para recrutar os que iriam com ela a Cotaxé, no estado do Espírito Santo. Aos 24 anos, Letícia cursava o primeiro ano da faculdade de Psicologia, seu segundo curso de graduação na UFSC. Ela adorava estudar e liderar. Dentre os estudantes, escolheu dois do curso de Medicina, duas de Letras, um da Biologia, um de Odontologia, duas de Educação Física, uma de Educação Artística, um de Bioquímica, uma de Enfermagem e um de Agronomia. Sob o forte calor de dezembro, treinou o grupo para testemunhar o que nem ela estava preparada: a miséria do Brasil rural da ditadura militar.
De Florianópolis, o ônibus partiu rumo ao Espírito Santo carregando estudantes com hormônios à flor da pele. Passou por Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro para finalmente chegar a Cotaxé, no distrito de Ecoporanga, quase 56 horas depois. Nas roupas e cabelos dos passageiros, a influência da cultura hippie que marcou a década de 70. Entre o grupo, estava Nilton Shigueo, um estudante de medicina magro, de óculos de grau, que fora de última hora incluído na viagem. Letícia substituiu um dos integrantes depois de perceber que seu comportamento poderia prejudicar o trabalho da equipe.
"Eu nunca vou esquecer o nome dessa cidade: Nonoai", me contou minha mãe quando era viva. "Eu expulsei esse estudante, cujo nome não me recordo — lembro apenas de que ele era de Nonoai, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul — e convidei para o projeto a pessoa que hoje é o teu pai."

O grupo de forasteiros chegou à pequena cidade exausto. Instalaram-se numa pequena escola a três quilômetros do local que iriam atender à comunidade. Duas salas de aula se tornaram alojamento dos estudantes, divididos por gênero.
Para os estudantes que vinham de Santa Catarina, um estado com alto IDH, a realidade foi um choque. Era a primeira vez que viam a fome e a ausência absoluta de saneamento básico. No centro da pequena cidade, porcos se misturavam às crianças, que andavam descalças em meio à sujeira. “Após os atendimentos da manhã, oferecíamos merenda para as crianças da comunidade. Elas levavam seus pratos de comida até o portão para que pudessem compartilhar com seus pais”, conta Nilton ao relembrar da experiência.
“Quando fazíamos visitas domiciliar, víamos a fome, a falta de saneamento e também as dificuldades surgidas pela falta de estudos.” Nilton conta que os estudantes conseguiram doações de filtros de água para distribuir na comunidade. Quando retornaram às casas no dia seguinte, encontraram a peça principal do filtro — o filtro de fato — removida. “Eles diziam que a água demorava para escorrer com a peça. Então tivemos que também ensinar para que servia o filtro e as consequências da água contaminada.”

Enquanto os estudantes de Letras treinavam professores e o de Agronomia construía um jardim comunitário, os de Medicina sofriam com a falta de instrumentos e medicamentos que pudessem ajudar à comunidade. O livro “Onde Não Há Médicos: O Guia para Cuidado da Saúde em uma Vila”, do americano David Werner, se tornou a bíblia dos futuros médicos. Werner escreveu o livro depois de ter passado por um projeto de voluntariado semelhante no oeste do México em 1970.
Em uma das ocasiões, uma criança foi trazida com uma picada de cobra no tornozelo. Já sabendo do destino provável, os pais choravam em desespero ao redor do filho, enquanto outros parentes imploravam aos estudantes para que salvassem o menino. Sem soro antiofídico, Nilton temia que fosse assistir pela primeira vez a morte de uma criança. “Por sorte, um tio chegou com a cobra morta em suas mãos e descobrimos que ela não era venenosa.” O susto fez com que Nilton estudasse o livro de Werner mais a fundo.

Janeiro de 1980. Era uma tarde insuportável de calor. Letícia cuidava da recepção quando um pai chegou com seu filho de oito anos semi-morto nos braços, dessa vez, sem picada de cobra. Naquele dia, todos os estudantes de medicina estavam no local, mas por algum motivo a coordenadora correu, com urgência, em direção a Nilton.
“Eu era apenas um estudante”, lembra Nilton. “Pense na quantidade de coisas que poderia estar acontecendo com aquela criança”. Mas a intuição de Letícia estava certa. Nilton logo deduziu que o menino, cuja pele estava branca como papel, estava desidratado à beira da morte. “Não tínhamos nem soro. O hospital mais próximo estava longe demais”, lembra Nilton. O estudante então preparou um soro caseiro com um litro de água, sal e açúcar e, com uma colher, pacientemente alimentou o menino. Foram quase duas horas até que finalmente a criança voltou à sua cor normal.
Letícia, que esperava do lado de fora, se chocou ao ver o menino sair do consultório caminhando. Nilton não sabe, mas foi esse momento que a futura psicóloga se apaixonou pelo voluntário que se tornaria o pai de seus filhos.
Os forasteiros eram tratados como visitantes ilustres. Eram convidados para missas em igrejas católicas, cultos em templos evangélicos, e eventos da cidade. Como sinal de respeito, se faziam presentes sempre. “Em uma dessas missas, Letícia e eu passamos a hora segurando mãos. Assim, sem compromisso”, lembra Nilton.
Apesar das dificuldades, o mês passou rápido. Quando estavam fora de serviço, eram simples universitários. Imagine 20 deles de férias em pleno verão acampados no mesmo cômodo. Aprontavam uns com os outros sem medo de repressão. “Entre o nosso quarto e o das mulheres havia uma abertura pelo teto. Vez ou outra jogávamos um sapo só por diversão”, lembra Nilton. “Só que entre elas havia uma estudante que não tinha problema nenhum. Ela pegava o sapo e jogava de volta!”

Nilton e o estudante de Bioquímica, Sidnei, às vezes desapareciam do serviço para tomar banho na cachoeira próxima à escola. Quando Letícia descobriu, o chamou e o suspendeu do programa. “Ela me deu a passagem de ônibus e disse para eu pegar minhas coisas e ir embora. Fiquei muito chateado. Quando olhei a passagem, notei que era falsa!”, conta Nilton. “Era apenas uma brincadeira, mas eu quase caí.”
*
O mês terminou e o grupo voltou para casa afetado pela realidade do interior do Brasil. A miséria era tão grande, que restava a sensação de nada ter sido suficiente. Mas a experiência mudaria a vida dos estudantes: Letícia se formou em Psicologia e foi trabalhar com adolescentes em situação de risco na extinta Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem). Nilton se formou em Medicina, se especializou em Pediatria, e passou quase trinta anos atendendo em um posto de saúde na comunidade mais carente da cidade de Criciúma.
Os dois voltaram de Cotaxé e começaram a namorar naquele verão. Casaram-se no ano seguinte e tiveram três filhos: Rodrigo (1983), Juliana (1985) e Fernanda (1987).





Olá Juliana, tudo bem? Sou Glmar Ribeiro, moro em Vitória-ES e fiquei emocionado ao ler, Dois Forasteiros em Cotaxé: a história de Letícia & Nilton. Tenho 47 anos, sou do Cotaxé e fui uma das crianças atendidas pelo Projeto Rondon e, me marcou muito o Médico Sakae, que pelo que entendi era o Nilton, teu pai. Eu tinha apenas 05 anos em janeiro de 1980, ia completar 06 em março e, apesar da pouca idade, trago em minha memória, momentos inesquecíveis. Hoje sabemos que eram estudantes, mas para nós eram anjos, médico, Dentista, Professores...mais que isso, pessoas que trouxeram esperança para um povo do interior em tempos difíceis. Ao ler o seu relato, fico muito feliz em saber que também…
Lindo e poético relato, de uma linda história de amor, Eternizar em histórias as pessoas faz com que elas permaneçam sempre vivas entre nós. Além de prestar um merecido tributo aos que muito já fizeram, muitas vezes em silêncio, pelos outros. Saudades de nossa Letícia, que deve ter achado o máximo essa tua crônica. Parabéns, querida Ju, cada vez melhor na arte de encantar, seja por imagens, seja por palavras. Te amo, querida sobrinha!
E assim começou uma linda história de amor que foi eterna enquanto durou... Parabéns Ju por manter viva a memória desse amor e nos emocionar com esse relato. Beijos.