Como descobri que sou descendente de quem escravizou minha tataravó
- Juliana Sakae
- 15 de abr. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 20 de dez. de 2019
Há quase três anos sou obcecada por construir a minha árvore genealógica. Se você começou a sua, sabe que é uma pesquisa sem fim. Afinal, os galhos se abrem exponencialmente: 4 avós, 8 bisavós, 16 trisavós, 32 pentavós e assim por diante. A cada documento descoberto, um leque de possibilidades.
No ano passado, em conjunto com o pesquisador Gonzalo Villarreal Rocca, escrevi a biografia da minha trisavó Thecla Maria de Jesus que, segundo documentos, foi “escrava de José da Rocha Coutinho”, filha de Anna Maria de Jesus, “escrava do mesmo Rocha“, e de pai incógnito [sic]. Gonzalo havia descoberto que Anna tivera outros dois filhos com um “pai incógnito” que, misteriosamente, foram registrados com o sobrenome Rocha. Desde então, não sosseguei até encontrar alguma pista sobre o tal do “pai incógnito”.

Foi meu primo Gustavo Gubert, que virou meu pesquisador-assistente, quem descobriu em um fórum de genealogia um descendente direto de José da Rocha Coutinho. José é ninguém menos que o irmão de um dos maiores escravocratas da região norte de Santa Catarina, Joaquim da Rocha Coutinho, o fundador da Vila de Senhor Bom Jesus do Paraty (atual Araquari).
Decidida a encontrar alguma informação sobre quem engravidou Anna, atravessei o Brasil para conhecer o tataraneto de José. Contei sobre o livro que estou escrevendo sobre meus antepassados e perguntei se ele toparia fazer um teste de DNA para ver se existia algum parentesco com a minha avó e minha tia-avó, que são netas e uma das descendentes vivas mais próximas de Thecla. Ele topou.
Quase 6 semanas depois, o resultado voltou: ele e a minha avó têm em comum 19cM (centimorgans). Com minha tia-avó, 46cM. A quantidade de centimorgans que compartilhamos com alguém ajuda a entender o grau de parentesco com qualquer pessoa. Por exemplo, um primo de quarto grau pode compartilhar entre 20 e 85cM de acordo com a empresa que faz o teste que escolhi, o Ancestry.com. Acima de 20cM, o Ancestry lista como possível primo próximo.

O teste não necessariamente prova que José da Rocha Coutinho é o pai “incógnito”, mas dentre as possibilidades (poderia ser o pai dele, por exemplo), é a teoria mais provável. O projeto colaborativo “The Shared cM Project” coleta resultados de DNA de voluntários do mundo todo para mapear a média de cM compartilhados de acordo com o grau de parentesco. Na tabela abaixo, posicionando o tataraneto de José da Rocha Coutinho como parâmetro inicial (“Self”), se seu tataravô (JRC) fosse o pai “incógnito” de Thecla (TMJ), minha avó (MDVS) e tia-avó seriam consideradas Half 3C1R. Traduzindo a sigla livremente: “meio-primo de terceiro grau”, o que significa três graus de separação entre pessoas que têm apenas um pai em comum (como em “meio-irmão”).
De acordo com a tabela, pessoas com esse tipo de relacionamento têm em comum uma média de 42 cM compartilhados, o que condiz com o resultado dos testes de DNA [cM compartilhados entre tataraneto e minha avó = 19cM, e tia-avó = 46cM].

O Sagrado Feminino
Honrar a ancestralidade feminina faz parte da filosofia conhecida como Sagrado Feminino. Foi por causa deste movimento que o pesquisador Gonzalo — argentino residente em SP — me contatou no ano passado para unir esforços. Ele é marido de Marcela Mölk, que buscava mais informações sobre sua linhagem materna por fazer parte de grupos do Sagrado Feminino. Ela é, assim como eu, tataraneta de Thecla Maria de Jesus. Marcela buscava mais informações sobre Anna, a mãe de Thecla, já sabendo que ela havia sido escravizada.

“Existe uma dificuldade imensa em encontrar informações sobre antepassados africanos”, conta Marcela. “O meu lado paterno é europeu; sou 50% austríaca. Minha árvore genealógica naquele lado é bem completa, como imagino que deve ser a sua japonesa”. Como conto em outros posts, tive muita facilidade em descobrir informações sobre minha ascendência oriental devido à organização e manutenção de acervos de documentos genealógicos — ao contrário dos documentos de afrodescendentes, que foram queimados pelo então ministro Rui Barbosa em 1890.
Quando Marcela soube do resultado dos testes de DNA, ela conta que teve um sentimento muito parecido com o meu — e, imagino, com terão as mulheres da minha família: “Foi bem impactante entender que sou descendente do oprimido e do opressor”. Em poucas palavras, Marcela traduziu o sentimento que me levou a buscar essa história e, quem sabe, finalmente ter passado ela a limpo.
Próximo passo: Comprovar ou refutar a teoria de que o pai “incógnito” de Francisco Xavier Vieira é José Vieira Rabello, o “proprietário” de sua mãe, através do teste Family Tree Y-DNA de 67 marcadores ($268) de um descendente da linhagem masculina de Francisco Xavier Vieira. O teste analisa apenas o cromossomo Y (herdado do pai) e especifica a etnicidade dos ancestrais paternos. Eduardo Luchini Vieira, neto de Alfredo Xavier Vieira, se voluntariou para nos ajudar.
Nota: É opção da autora o uso da palavra “escravizada” (adjetivo) em vez de “escrava” (substantivo), pela conotação não permanente da primeira. Ela “está” escravizada, e não “é” escrava.
Nota 2: a palavra tataravó significa tanto pentavó (originalmente) quanto trisavó (coloquialmente). Aqui, utilizo a palavra como sinônimo de pentavó.





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